Às oito da manhã estávamos nas Alminhas. As paredes despidas e cheias de bostik e pregos tornaram o ar ainda mais frio. Sempre foi uma casa gelada: no Inverno, para ver televisão, eram precisos dois edredons e uma manta e um aquecedor colado às pernas. Antes de dormir (num quarto previamente aquecido durante cinco horas), o ritual era sempre o mesmo - uma viagem à cozinha para aquecer água para o saco de água quente. De manhã era o fim do mundo, a correr para a casa de banho, de nariz congelado e uma asneira na ponta da língua.
Chegámos às Alminhas às oito da manhã. Deitámos fora os últimos sacos de lixo, abrimos a porta aos senhores do gás e da água. Ficámos sem gás e sem água. Juntámos todas as coisinhas que ficaram para trás e que até pareciam poucas mas que afinal deram para encher dois carros. Fumei cigarros pela casa toda, coisa proibida (por mim inclusive) nos tempos em que a casa tinha gente. Os senhores das mudanças chegaram às 9h e devagar, tão devagar que nos ia dando um colapso nervoso a fazer contas às horas, levaram os móveis e os electrodomésticos um a um. E a casa foi ficando ainda mais vazia. E mais fria. E mesmo fartas de mudanças, fartas de acartar com coisas, cansadas e geladas e a maldizer o frio daquela casa - porra que é gelada raios partam - uma coisinha apertou-se cá dentro. Porque nem sempre a casa era assim. E quando o sol se punha a jeito, entrava pela janela da sala, reflectia na bola de espelhos e espalhava-se aos pontinhos brilhantes pelo tecto e pelas paredes. E na Primavera as árvores da rua de baixo largavam perfume à noite. E no Verão abríamos as janelas todas e o ar quente ficava lá dentro. E quando chovia muito a varanda ficava alagada porque o escoamento entupia e eu calçava as galochas às cores e com uma faca desentupia e a água saia em jorros lá para baixo e os vizinhos protestavam e nós escondiamo-nos a rir. À noite todos os loucos saiam à rua e não se aguentava o barulho, os gritos, as cantorias, as conversas aos berros, os carros a apitar, a música a ecoar por toda a travessa. Hoje chegámos às Alminhas às oito e no fim das escadas, lá em baixo, deixámos as chaves no correio do senhorio, quase - quase - sem olhar para trás. Cá fora um maluco revirava o nosso lixo, arrancando-o dos sacos onde descansava em paz e escolhia, muito compenetrado, toda a porcaria inútil que deixámos para trás.
E depois de três anos e muitos meses as Alminhas seguem caminho - quase sem olhar para trás (quase) - e fecham o estaminé. Foi bonito, que foi, mas tudo tem o seu tempo.
Se tiverem saudades nossas, nada temam, continuamos à distância de um link. A Leididi está aqui e a Mariana está acolá.
Ao Sebastião, um beijinho. Vai ser difícil não ter com que gozar, pois vai?